Ressureição - Comentário ao livro Cemitério de Pianos
"Mas, em todas as ilusões, escutava pianos, como se escutasse amores impossíveis”
 
 
Ressureição – ato de ressurgir; vida nova; renovação; reaparição.
 
Nascer. Viver. Morrer. Nascer. Cemitério de Pianos é um livro que, à partida, conduz logo o leitor ao entendimento de que será uma história de ciclos. Numa das primeiras páginas do livro aparece unicamente a palavra ressurreição, uma palavra que significa renovação, reaparição. Esta palavra está muito ligada à religião, uma vez que Jesus Cristo, segundo o que acreditam os cristãos, ressuscitou, voltou da morte. Também neste livro, de uma forma muito particular, cada um dos personagens perdura no tempo.
O livro de José Luís Peixoto, narrado a duas vozes intercaladas, fala da vida de uma família comum em muitos aspetos, mas particular em tantos outros. Partindo de uma personagem real, Francisco Lázaro – um atleta português que morreu nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, durante a maratona – o autor constrói uma história que retrata não só a geração do atleta como a anterior, com eventos fictícios. Acaba por ser uma forma de homenagear o atleta, aproveitando a fatídica forma como morre, mas sem se servir da sua vida para contar uma história.
O pai de Francisco Lázaro, também de seu nome Francisco, é doente terminal. Tem 4 filhos, Marta, Maria, Simão e Francisco, mas Simão não mantém uma relação com o pai, não mantém qualquer contacto, de forma que nem o visita no hospital, quando está prestes a morrer. Estas 4 personagens, retratadas em ambas as narrações, possuem várias semelhanças com outras personagens, da geração de Francisco o pai.
Marta, a filha mais velha, que come compulsivamente, obesa, tem como ligação antepassada uma tia do pai, também obesa, com quem o pai apenas está uma vez. Maria é uma mulher como tantas outras, que sofre de violência doméstica, que parte vezes sem conta mas que acaba sempre por voltar para o marido. Supõe-se que a sua ligação seja com outra tia do pai, que morreu de forma trágica, apesar de, no livro, Maria não chegar a morrer. Simão é uma espécie de reencarnação de um outro tio do pai. Também ele cego de um olho, também ele trabalhador irregular na carpintaria de família, também ele desaparece, por vezes. Ao contrário do tio, que desapareceu sem deixar rasto, Simão está na narração no fim do livro. Por último, Francisco é a reincarnação do seu próprio pai, trabalhando na carpintaria, engravidando uma namorada, fazendo o mais correto, casando-se.
Há linhas comuns no livro, traços que permitem o leitor seguir uma cordel, encontrar semelhanças, perceber a repetição que existe através da história, através do tempo. O cemitério de pianos é um local na carpintaria da família, onde residem muitos pianos avariados, que acabam por servir de auxílio quando é necessária alguma peça para consertar pianos. Esta actividade passa na família, como uma herança mas, o  cemitério de pianos, serve de pano de fundo aos romances de ambos os Franciscos, serve de local à traição de Maria com o marido de Marta, serve até de cenário para uma conversa imaginária entre Francisco pai e uma das suas netas, já depois de morto, numa reflexão do narrador. Não só o cemitério de pianos é cena recorrente, como também o são as referências a pianos e a música, ao longo de todo o livro.
A narração neste livro é, também ela, bastante particular. A escrita é feita à velocidade dos pensamentos, o que acaba por se traduzir em cortes, assuntos a surgir a todo o momento, repetições, de forma a exacerbar os sentimentos da personagem. Por vezes poderá resultar numa perda de raciocínio do leitor, que poderá não conseguir acompanhar a variação de pensamentos, por vezes tão rápida que as frases nem chegam a ser terminadas até muito depois.
O livro acaba por transmitir a ideia de herança de antepassados, não só em termos físicos como também no que aos temperamentos diz respeito. Acaba por se colocar a questão da herança genética, bem como a forma como as pessoas são criadas, que influencia o que serão mais tarde. É, uma história de ciclos. Nascer. Viver. Morrer. Nascer. E é por isso que, na história, cada vez que alguém morre, alguém nasce. Um ciclo. Uma espécie de ressurreição.
 “No mundo, eu não era eu. Eu era um reflexo que alguém lembrava vagamente. Eu era um reflexo que alguém sonhava sem acreditar”
Ressurreição
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Ressurreição

Comentário crítico acerca da obra de José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, lançado em Portugal em 2007. Trabalho realizado no âmbito da cadeira Read More

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